Considerações de um anjo caído.

A dor que ele sentiu não foi da queda. Essa, havia sido até libertadora para ele, uma liberdade diferente. Que não podia ser explicada... apenas sentida. Algo que nunca havia sentido antes.
 O que doía eram as costas, no exato local onde suas asas ficavam. Brancas, macias e grandes, agora davam lugar a um ferimento preto, como se tivesse sido queimado. Putrefato...feio.
 Era de fato um caído, antes ele que tinha a exímia função de guerreiro dos céus. Agora um caído, sujo, marginalizado que não servia para nada além de praticar o mal. Porque era aquilo que os satisfaziam.
 Contudo, ele que sempre olhara  para humanidade com olhar de inveja. Homens que podiam sentir coisas que nem o mais sábio dos anjos sabia explicar. Não queria o mal de nenhum deles, queria ser um deles...
 Não sabia que direção seguir, andou perdido sem rumo. Ficando ao relento, fome, frio, rejeição...não entendia como os humanos, que tanto admirava, podiam ser tão cruéis.
 Já o haviam advertido quanto a isso, mas se recusava a crer que não tinha um que se salvasse. Até que um dia, uma luz se mostrou no meio das trevas. A menina que tocava no meio da rua, ele podia jurar que fosse um ser celestial como ele.
 De rosto frágil e ao mesmo tempo forte, pequena ruga na testa enquanto se dedicava ao viloncelo, chamou atenção do caído. Ele podia ver sua estória, tinha que tocar para manter a faculdade, o pai preferia que ela optasse por direito, de modo que a escolha da menina havia sido outra. Ele se recusara a ajudar nos custos.
 Mas isso não diminuiu a força de vontade dela, ele podia ver facilmente. Preferiu ficar observando de longe, deliciando-se com a melodia que nos segundos seguintes foi substituída por um grito:
 -Não! - Havia sido rápido, o meliante levara os trocados que a jovem conseguira com sacrifício. Faria falta e como faria!
 O caído apressou-se a interceptá-lo, de sorte era apenas um menino. Vítima de falta de orientação... Falta de uma família, de alguém que o cuidasse e dissesse que aquilo não era preciso.
 O Caído o imobilizou, em seguida tomou os pertences da menina. Quando soltou o pequeno, este não se demorou a fugir. O Caído lamentou pelo menino...
 Voltou até a moça e acanhado devolveu a caixinha de música, ainda com os trocados. A moça sorriu em meio a soluços e o agradeceu com um abraço.
 O Caído pode sentir, e nunca se sentiu tão grato em tantos anos. Nunca no céu havia sentido algo como aquilo. Soltou-se da moça e preparou-se para escutá-la novamente.
 De fato entendia a complexidade dos humanos, nem todos eram cruéis... eram apenas produto do meio onde viviam. Alguns escolhiam, como ele, sair da zona de conforto, outros como o menino escolheram continuar sendo vítima.

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